CONTOS:
ADULTOS
1º lugar: Leonardo
Augusto Bora - Irati/PR
Nel
mezzossauro del camin
Talvez fosse sonho, um tanto confuso.
Caminho solitário por labirintos de pedra. Estou no centro do aqueduto em
espiral, no fundo do mundo, onde a água ainda brota e é potável, gelada muito
gelada, e amarro mais forte os cadarços, sapatos de solado alto, para neve,
sapatos de alpinista. A bússola está quebrada, não sigo as placas nem tenho
guias. Sinto a vida que brota das pedras, a água que escorre das bicas, os
córregos impacientes, um gole pr’aguentar o frio, cataia, a garganta em brasa –
eu preciso me devorar, desmanchar, debater. Sinto ainda mais frio e me fecho, o
gorro protege as orelhas, a textura das manhãs encapuzadas, percorrendo a linha
férrea, em direção à escola, a mochila nas costas, Moby Dick, um outro gole na
graspa, acompanhando os trabalhadores, as pernas movendo as bicicletas,
sonâmbulos, em meio à neblina, branco sobre branco, Malevich, Malinche, o gelo
da geada, a fumaça ainda mais branca das chaminés das fábricas, a vida
cristalizada - os figos da compoteira. É a forma de uma baleia, a professora
disse. O mapa da minha terra. Ponta de flecha! Eu me deito, vitruviano, e a
água encobre os pedaços, a água o meu santo dai-me. Do gelo ao caldeirão
fervente, as rochas nuas da ancestralidade, a terra preta candente, candace, o
solo fértil da minha terra, oleoso do xisto cobiçado, onde o trigo e as flores
cresciam majestosos e os fósseis revelavam as relíquias antepassadas, entre
cedros, oliveiras e araucárias, pteridófitas pterodáctilas. Trigais e pastos
tragados pelo gelo, cascatas em luzes-lustres, brincos de princesas, as
chaleiras assobiando feito as fábricas no ano-novo, a vida nova, na olaria, o
cheiro ocre da cerveja quente, o lúpulo em barras, prensado, ofendendo as minhas
narinas acostumadas aos parreirais, o banho de caneca, o brodo no jantar,
sobreviver ao frio torna os homens felizardos, amantes das pequenas coisas. Os
dormentes são travesseiros, mil cabeças esmigalhadas, a forquilha procura água,
a forquilha do meu pai, a forca nos parreirais, o operário na chaminé,
forquilhas por toda a parte, água em sublimação, a água-viva é vida nova, na
cantiga da noite da Páscoa, na madrugada em que batiam na porta – quem batia?
quem chegava? “Hoje imo ter notícia!”, a Nona anunciava. Então afoguei-me nas
cavas? Hoje imo ter notícia: se um dia começa bem, vai terminar em tragédia – e
houve poucas manhãs tão promissoras quanto aquela. Jungfrukällan. Mas nas flores amarelinhas, medrosas, que brotam do
gelo estéril, ali eu recrio a vida. Eu trago a poesia. Às margens do
riocorrente.
2º
lugar: Leonardo Augusto Bora - Irati/PR
Aquário
Foi o que restou, ele
sabe. O aquário no móvel da sala. O presente mais debatido, dia dos namorados,
o primeiro, no ano passado. Esférico, escolhido num sábado à tarde. A vendedora
atenciosa, a praia ensolarada, memórias boas embebidas de clichês. Como as cartas
há pouco queimadas. As promessas jamais comprimidas. E mais promessas
esmigalhadas, engolidas de um gole só – o drama, a briga, o suicídio que virou
chacota. Idiota! Porque o amor, ele compreende, virou uma convenção, um
constructo sociocultural, capitalizado, um produto à venda no shopping-center,
carcomido em um outdoor. O chalé das férias, os cobertores, dormir ao som da
chuva, os álbuns compartilhados, bobagens e mais bobagens! Ela me traiu – e
isso faz dele o diabo. Porque o amor acaba, ele pensa no sofá, ou sequer
começou da parte dela, sempre e tão somente quieta, enfiada nas pesquisas, nos
congressos, nos simpósios, nos encontros, nas reuniões da multinacional. Ela
era a mulher do mundo. E eu, ele trava, e eu, o disco na vitrola arranha, e eu não
saí da província. O músico frustrado, tombado, em um canto. O vômito seco, a
mancha no tapete. A piscina suja de folhas, limbo, dengue. A falta d’água, a
boca em rachaduras. Foi o que restou - ela deve saber, também. O aquário no
móvel da sala. Mas ela arrumou as malas e foi embora, debochando das ameaças,
mostrando o dedo do meio. Porque o amor, ele insiste em pensar, nos termos
dela, da crítica heteronormativa acadêmica pós-doutora conceito A, o amor não
mais vale nada. Os tempos são outros, little
darling. John Lennon morreu e com ele um sonho. Eu sou dos morangos
mofados, ele não sabe. Eu vivo do passado, regurgita. Ele sabe, efetivamente:
sequer foi bom enquanto durou, mas eu não admito a perda. Foi-se o papo da “Era
de Aquários”. Foi o que me restou, o aquário no móvel da sala. Com o peixe
betta, Betta
splendens, amarelo e vermelho, de rabo fulgurante. Uma chama imersa na água. Como
a chama nos confins do cérebro, dinamitando as pedreiras. Foi o que me gerou,
ele sabe: um aneurisma. A sensação de que há uma represa, dentro da cuca,
prestes a explodir, como viram no teatro, na peça A marca da água. Quem me dera ser escafandrista, ele sonha, no
carro, ao voltar para casa, o saquinho no banco ao lado. Venceu a letargia e
saiu. Retornou ao cair da noite, animado, e despejou outro beta no aquário, um
cigarro na bunda do outro. Azul, intenso. Violento. Faixa preta. Porque o amor
vira a guerra, ele então projeta. Que se matem para eu ver e curtir.
3º
lugar: Leonardo Augusto Bora - Irati/PR
Lição do menino Jardas
Eis o que o menino disse, às margens do
grande rio:
-Vê a água, esse mundaréu? É rio, mas
podia ser mar. E começa em gotinhas, pinga-pinga, do gelo candente - a
cordilheira branca. Viu a neve, ao vir para cá? As neves eternas do mundo. É
longa a viagem do rio, comprida e acidentada. Desce as montanhas em fúria,
converte-se em cascatas, lagos, riachos, piscinas, sem falar nas tempestades,
evidentemente, e termina aqui perto, furioso, quando encontra o oceano e se
quebra em ondas. A foz. Após quilômetros e mais quilômetros de curvas. Essas
águas que aqui escoam, no alto, entre as montanhas, nutriram os povos do Sol,
nas cidades de pedra. Depois um sem-fim de tribos, já no mapa da nossa terra,
em meio à floresta úmida, das árvores monumentais. Por isso são curativas,
milagrosas. As águas escuras são as águas da história. Consegue ver a outra
margem? Ninguém vê, eu mesmo nunca vi. Aqueles navios vieram de longe, são
piratas. Roubam a nossa água. Ninguém sabe que a gente existe, é fato. Mas
estamos aqui, às margens do grande rio – a única cidade às margens do grande
rio, a única resistente (embora, vê, em ruínas). O porquê? Porque o rio não
deixa. Observe com calma as ruínas. As vigas entre o mato, no final do
trapiche. O concreto armado, a ferrugem dos motores, os tijolos, as tábuas.
Estamos onde as caravanas se instalavam, com circos luminosos e animais. Ali,
uma igreja havia, com torres e campanários. Do outro lado, onde as crianças
brincam, naqueles casebres havia fausto, os palácios dos governantes que
administravam (ou pensavam administrar) as terras do grande rio. Agora são as
ruínas: corpos de heróis a cães e abutres
pasto. A Mamãe está morta, como narram os antigos. Ficou o lixo. O tétano
ao sol da praia, os cachorros comidos de peste mastigando os nervos da carne,
as crianças abandonadas que insistem em chafurdar, esquálidas, no lodo, nos
destroços, aos cortes e machucados: os pés descalsos. O rio leva tudo, feito
lava. Avança a cada dia mais. Não se sabe a base da raiva, os motivos da
rebeldia. Inchou-se de água e força. Destrói as estradas, escava os barrancos,
afunda as traineiras e as balsas. Apenas os navios ficam, na linha que o olho
alcança. Roubam a nossa mágoa. A água traga. A draga do rio não cessa. E no
entanto sobrevivemos, criando as nossas choupanas, gambiarras, palafitas,
canoas que desafiam. Ribeirinhos somos todos nós – e um dia este rio acalma.
Porque nascemos há muito tempo e sabemos da natureza. O meu papel é o de quem
aguarda.
4º
lugar: André Telucazu Kondo - Jundiaí/SP
Abraço
Joana queria sentir o abraço de Hideki. Sabia que isso
era impossível. Trinta anos de tentativas frustradas. Ela abria os braços,
prestes a levantar voo. Em seguida, a queda. Hideki, inerte, até podia ser
abraçado, mas não abraçava em retorno. Joana acreditava que o marido não a
amava. Talvez, nunca a tenha amado.
A água escorria quente pelo corpo de Joana, tentando
levar o velório pelo ralo. Lembrou-se de que teria que podar os bonsais do
marido. Sentiu uma pontada no estômago. Não saberia qual dos galhos cortar.
Assim também era em sua vida. Nunca sabia o que extirpar de sua vida. Como um
bonsai, sentia-se uma miniatura de pessoa. Poderia ter crescido, ser alguém.
Mas, não. Casou-se com um homem que nunca a abraçou. Permaneceu com os pés
fincados entre os limitados ladrilhos da cozinha, preparando uma comida da qual
nunca gostou: sopa de soja, arroz grudado. E se não tivesse se casado com
Hideki? Se o tivesse cortado de sua vida antes? Teria encontrado mais abraços
pela vida? Joana olhou para o ofurô. Deu-se conta de que há muito tempo não
sentia a água escorrendo, livre, pelo corpo, como naquele instante de luto. Por
tanto tempo havia usado o ofurô, hábito que adotou do marido. O chuveiro até
engasgou antes de chorar os primeiros pingos. O ofurô vazio.
Trinta anos. O que
fizera por todo esse tempo? Escutou músicas tristes, com flautas e vozes
chorosas de saudades que não lhe pertenciam, em uma língua distante que nunca
beijaria sua alma. Nunca aprendeu japonês. Nunca leu os mesmos livros que o marido.
Nunca compreendeu suas histórias. Assim foi sua vida, organizando uma
biblioteca inacessível, segredos que nunca desvendaria. Afinal, quem havia sido
aquele homem com quem se casou? A água do chuveiro esfriou subitamente. A
resistência se partiu. Joana tiritava. Sentiu o frio da solidão. Todavia, a
água fria a despertou. Fechou o registro. Encheu o ofurô. Imergiu corpo e
pensamentos. A sensação do calor retornando era boa. Sentiu fome, salivou ao
pensar em tomar uma sopa de soja. Achou isso estranho. Ela sempre dizia que não
gostava dessa sopa. Cantarolou uma velha canção japonesa. Surpreendeu-se.
Estava cantando em japonês? Pensou nos bonsais. Mentalmente, podou os galhos,
sem hesitação. Apenas mínimas mudanças. Espantou-se consigo. Gostava das coisas
como eram, como estavam! No fundo, havia sido feliz. A única coisa que lhe
faltava... Saiu do ofurô. Enxugou-se. Vestiu-se, lentamente.
Ao sair do banho, os filhos vieram ao seu encontro,
braços abertos. Joana, imóvel, sentiu o calor dos braços... Sentiu o abraço de
Hideki...
5º
lugar: Luiz Fernando Abreu Araújo - Rio de Janeiro/RJ
Título:
A poça d’água
Havia
chovido muito e, diante da minha janela, uma grande poça d’água havia se
formado. Eu já ia colocar o meu barquinho de papel sobre ela, quando me surpreendi:
-
Que falta de sorte a minha! - ela resmungava. - Desci do céu com tanto amore
acabei aqui, nesse buraco, virando poça! Tudo o que eu queria era me tornar
importante e ser eterna, mas, infelizmente, me tornei um fracasso!
-
O que é isso, dona Poça! Você é água e a água é uma das coisas mais importantes
da vida! – retruquei, tentando consolá-la.
Mas
ela nem ligou. Continuou triste e emburrada.
Pouco
depois, no entanto, o céu ficou limpo e estrelado. E a lua cheia, linda e
vaidosa, foi admirar-se justamente nela.
-
Que luxo, hein d. Poça! Tornar-se espelho da lua não é para qualquer um! –
disse eu, dessa vez, tentando animá-la.
Mas
qual não foi a minha surpresa ao ouvi-la lamentar novamente:
-
Que nada! Daqui a algumas horas irá amanhecer e não haverá mais lua. Portanto,
logo voltarei a ser essa mesma poça
inútil!
Porém, quando o dia amanheceu, trouxe consigo
uma grande surpresa para ela: Vários passarinhos surgiram para, alegremente,
banharem-se em suas águas.
-
Viu só, dona Poça! – disse eu da janela, dessa vez. – de inútil a senhora não
tem nada. Tornar-se uma piscina para os passarinhos não é para qualquer um!
-
Mas, como ela era cabeça dura mesmo...
-
Você acha? – ela resmungou. – Todos acabaram de voar e voltei a ser essa pobre
poça! E o que é pior – disse ainda, desolada: - logo o sol me secará e jamais
serei alguma coisa!
-
Hoje choveu muito, outra vez. E depois, quando abri a janela, tomei um susto.
Lá estava a dona Poça novamente. Porém, ela não estava triste, e sim radiante.
-
Posso saber por que tanta euforia? – perguntei curiosíssimo.
E
mais que depressa ela respondeu:
-
É que estou muito feliz! Hoje, descobri que sou renovável. Subo ao céu,
transformo-me em nuvem e caio novamente. Logo, sou eterna! Ser o espelho da lua
e a piscina dos passarinhos me fará muito importante. E quanto a você, pode vir
agora mesmo brincar comigo, com seu barquinho de papel.
5º
lugar: Maygon André Molinari - Irati/PR
Título:
Um banho com Clarice
me encontrei com clarice
no dia da morte de alguém - não sei quem
- na frente de uma capela mortuária. ela me viu e repartiu comigo o
guarda-chuva na calçada e depois me ofereceu uma blusa para eu não me resfriar.
disse que não, que eu já ia embora, me secava no caminho, a chuva já.
perguntei por onde
andava, há tanto tempo não nos víamos, deveria estar feliz, estar dentro dessas
vidas comuns que as pessoas sempre escolhem, mas não, ela falou, a voz mais
firme como firme só se torna a voz de alguém que está maior. estava sozinha,
criando uma criança, o pai se afastou: na verdade nem chegou perto - foi um vento: levou sonhos para nada.
e nós dois ali na rua, em
frente a um fim de vida, dividindo um guarda-chuva (que por certo não a
guardava) conversamos por uma hora, pondo em dia conversas que não podíamos ter
n’outro tempo. falei com mais ousadia, perguntei se ela lembrava que eu a amara
no colégio, que eu fora um mero servo
que entregou o coração em desespero. ela
riu, ela sabia, sim: ela lembrava. resolvi pegar pesado. falei que
delirei na adolescência, que a imaginava em minha vida, como mulher, como mãe de uns cinco filhos (ela ria) , que
a desejei por muito tempo, que por isso fui embora, ser doutor em outro mundo,
ganhar dinheiro, ser importante – e ela ria e não me dizia nada. então eu disse
que ainda havia tempo, que eu tinha a vida feita, que ela viesse e me
acompanhasse, que havia vinhas para a colheita, e havia vinhos e luares para
nosso amor ter seu começo e ela ria e não me falava nada.
resolvi silenciar.
ridículo estava sendo, talvez como naqueles tempos, motivo para ela não estar.
esqueci que havia um morto ( e quem sabe fosse dela) e senti a água no corpo,
escorrendo eternizada, e no banho com clarice, ali, numa calçada, me senti como
em batismo – na negativa de um amor me batizei dentro de um sonho, o passado
repassou , tive outra chance e ela também foi desperdiçada e ao chegar em casa
me parei na porta, água escorreu no chão (mas o que somos também escorre) e eu me sentei naquela poça e ri não quis
mais nada.
6º
lugar: Maygon André Molinari - Irati/ PR
Título:
Bolinha de Gude
O menino brinca de bola
de gude, ele acha que bola de gude não é feita em fábrica porque ele sempre
encontra alguma no terreno, brilhando sob o sol, mas ele não sabe que as
bolinhas que acha são aquelas que foram perdidas por seu pai na infância, e
pelo pai do pai, e pelo pai do primeiro pai, mas isso não impede o menino de
manter suas convicções, afinal, a infância é a época da certeza, mas que isso,
da esperança, e uma dessas convicções que o menino se orgulha por adquirir diz
respeito o fato de haver água dentro das bolinhas de gude, veja mãe, ele sempre
a chama, veja como olhando contra o sol aparecem gotas d’água dentro das
bolinhas, e a mãe sorri, não diz que não, negar o filho seria quase como fechar
a porta de salvação da humanidade, disso ela não seria capaz, o deixa em suas
brincadeiras no terreno, sempre sozinho, sempre falante, uma espécie de
narrador mirim de um jogo
inexistente entre partes inexistentes, e como fala esse piazinho, e de repente
a mãe abre a torneira e vê que a água está em falta, mas uma vez, e mais uma
vez para sempre, e só consegue falar que: de novo estamos à mingua, falta água
na cidade, e o menino que a escuta junta suas bolinhas no pacote e as entrega à
boa mãe: mãe, pode quebrar todas elas e
usar a água que está dentro que eu não posso brincar mais.
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