REPORTAGENS - ADULTOS
1º
lugar: Haroldo José Andrade Mathias
A escassez de água e as contradições do modo capitalista de
produção.
A crise hídrica não pode ser descontextualizada do modo de
produção capitalista, tendo o Estado e a ação política o papel de mitigar as
contradições da relação entre sociedade, natureza e capital.
Materializou-se a crise ambiental há
tempos prevista; a água, outrora tida como abundante, importante não apenas
economicamente, mas também fisiologicamente para os seres vivos, enfim foi
reconhecida como um líquido precioso. Enfatiza-se que os problemas ambientais
são provocados ou potencializados pela ação antrópica. Ou seja, pela atividade
humana de uma população crescente e que demanda cada vez mais recursos.
Esta visão simplista carrega uma ideologia ardilosa, pois além de
destacar a necessidade social de conscientização no uso dos recursos naturais,
entre eles, a água, também considera a população como causadora da crise,
resumindo a questão como decorrente da existência de um excedente populacional
que consome além da disponibilidade de recursos, reproduzindo uma ultrapassada explicação
malthusiana para a escassez, despolitizando a questão e afastando dela suas
relações com os aspectos sociais e econômicos. Basta exemplificar como a pobreza de significativa parcela da
população do sertão nordestino é naturalizada como decorrente dos “problemas
ambientais” da região, ignorando todo o contexto social, político e econômico.
A contradição é que enquanto se responsabiliza a população,
justificando que ela suporte os diversos custos sociais e econômicos, o consumo
crescente e o desperdício direto ou indireto são incentivados pelo sistema
capitalista para garantir o ciclo de acumulação e reprodução do capital.
É imperativo criticar a ideologia e os interesses que sustentam
tais concepções e compreender que a escassez de água é apenas uma das
consequências de um problema amplo e complexo. É fundamental abordar a questão
de forma totalizante, contemplando os pressupostos do modo capitalista de
produção e todas as suas relações com a superestrutura social (ideologia,
cultura, política, etc.), o que inclui a atuação do Estado, tendo em vista que
a ação estatal também respalda os interesses das personificações do capital e
pode se mostrar contraditória.
Dessa forma, enquanto se populariza
o discurso de que a água utilizada nas atividades diárias precisa ser poupada,
colocando um vizinho de fiscal do outro, reproduzindo até mesmo nas escolas uma
educação ambiental não crítica, fragmentada e pautada em ações individuais, não
se questiona quem são os maiores usuários de água potável, o benefício econômico
que eles auferem, os estímulos de consumo, o desperdício direto ou indireto, as
desigualdades nas formas de uso e tampouco a coerência das ações do Estado.
Assim, enquanto a sociedade, especialmente a parcela que não
dispõe de privilégios socioeconômicos, suporta os custos e as restrições, o
hidroagronegócio se revela como um dos maiores usuários, lucrando com a
exploração dos recursos hídricos e até mesmo com os investimentos feitos pelo
Estado.
Distorção no uso da água.
Segundo dados do Fundo das Nações
Unidas para Agricultura e Alimentação - FAO, divulgados na Gazeta do Povo em
2012, o consumo residencial estimado de água é em torno de 10%. No Brasil,
dados da Folha de São Paulo revelam que o consumo de água por habitante
aumentou, indo de uma média de 148,5 litros por habitante/dia, em 2009, para
163,3 em 2013. No entanto, o Brasil apresenta um índice de perdas na
distribuição que chega a 37%, muito longe do exemplo dado por países como Japão
e Alemanha, cujas perdas não ultrapassam a casa dos 3 e 7% respectivamente.
Paralelamente, existe o problema ambiental decorrente da falta de tratamento
dos esgotos. Segundo a Agência Nacional de Águas, o país trata apenas 30% dos
esgotos domésticos urbanos produzidos.
O setor industrial, segundo a Gazeta do Povo, consome em uma média
mundial, aproximadamente 20% da água, embora muitos investimentos para melhorar
a eficiência e reduzir o consumo acabem compondo os custos de produção,
portanto, sendo repassados no preço dos produtos à sociedade.
O setor agrícola, segundo dados
mundiais da Organização das Nações Unidas – ONU, utiliza 70% da água disponível
para consumo. No Brasil, os dados apontam um consumo que varia de 60 a 72%.
Entretanto, o fator agravante é a ineficiência na utilização. Aproximadamente 60%
da água desviada para a irrigação é perdida pelo uso de sistemas ou técnicas
impróprias; pela evaporação, decorrente da utilização em condições
atmosféricas, horários e em volume inadequados; em culturas comerciais
incompatíveis com o solo, pluviosidade ou outros fatores climáticos, etc.
De acordo com Andreas Eggenberg, diretor da Amanco, citado pelo
Instituto Akatu, a agricultura irrigada, que abrange 130 milhões de hectares no
país, necessita de cerca de 20 milhões de litros de água por hectare, duas vezes
a média de consumo da agricultura convencional. No entanto, apenas 8% do
cultivo irrigado são tecnicamente eficientes.
Além disso, as técnicas de produção adotadas nem sempre priorizam
as questões socioambientais, mas sim as econômicas; e embora a agricultura seja
genericamente vista como uma atividade imprescindível para o fornecimento de
alimentos, nem toda sua produção se destina ao consumo humano direto.
Contudo, é a ampliação da oferta de alimentos e de empregos que
justifica o uso da água em larga escala pela agricultura, especialmente por
parte das grandes lavouras comerciais, as quais até mesmo em regiões de clima
seco, como no Nordeste, são irrigadas o ano todo. Realidade diferente da
vivenciada pelos pequenos produtores, responsáveis por parte significativa da
produção alimentar, mas que sem acesso à água e a recursos , precisam contar
com a regularidade climática.
Uma
distorção no uso social da água que necessita da intervenção do Estado, pois de
acordo com a Secretaria de Agricultura Familiar, aproximadamente 13,8 milhões
de pessoas trabalham em estabelecimentos familiares, o que corresponde a 77% da
população ocupada na agricultura, e produzem cerca de 60% dos alimentos
consumidos pela população brasileira. Segundo dados de 2006 do último Censo
Agropecuário realizado pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, 84,4% do total de propriedades rurais do país pertencem a grupos
familiares, ocupando apenas 24,3% da área dos estabelecimentos agropecuários.
Os estabelecimentos não familiares representavam 15,6% do total de unidades e
ocupam 75,7% da área agrícola, indicando uma significativa concentração de
terras e consequentemente, concentração no acesso às fontes de água.
O
Brasil, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, conta com 12% de toda
água doce do planeta, disponibilizando um volume de água por pessoas 19 vezes
superior ao mínimo definido pela ONU. Esta grande disponibilidade e a
facilidade de acesso às fontes de água, apesar das diferenças regionais,
incentiva grandes investimentos por parte de empresas, geralmente
transnacionais, que utilizam a água em seus processos, como por exemplo, as do
setor de bebidas.
Dados
do BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – e do IBGE,
destacam que o crescimento acumulado na produção de bebidas no Brasil chegou a
50% no período de 2004 a 2013, o que contribuiu para que em 2010 o Brasil se
consolidasse como o terceiro maior produtor mundial de cerveja. Considerando
que a produção brasileira de cerveja foi de mais de 132 bilhões de litros em
2012 e que a Revista Super Interessante relata que para a produção de 1 copo de
cerveja são utilizados 75 litros de água, tem-se uma dimensão do consumo
econômico de água. Outro exemplo é dado pela Associação Brasileira da Indústria
de Águas Minerais, que situa o Brasil como o 4º maior produtor mundial de água
engarrafada, em um mercado que cresce mundialmente a 7,6% ao ano e que consome
mais de 206 bilhões de litros de água em garrafa.
Desperdício.
Além do uso econômico da água, há os impactos negativos do
desperdício, inclusive indireto. Conforme aduz a revista Carta Capital, no
mundo, vai para o lixo anualmente 1,3 bilhão de tonelada de alimentos. No
Brasil, o desperdício de alimentos chega a quase 15 milhões de toneladas ao
ano, o que segundo a Embrapa, seriam suficientes para alimentar 19 milhões de
pessoas diariamente. Além da água utilizada na produção desses alimentos,
perde-se a água utilizada na industrialização, na lavagem ou no cozimento
destes itens, entre outras etapas da cadeia de produção e consumo. Além de que
toda essa matéria orgânica gera transtornos socioambientais e uma significativa
quantidade de gases que impactam no clima.
Um levantamento do Conselho Mundial da Água, divulgado pelo
Instituto Akatu, ilustra a perda de água no desperdício de alguns produtos.
Cada quilo de pão utiliza 150 litros de água para ser produzido. Para cada
quilo de batata, são utilizados entre 100 e 200 litros de água, ao passo que a
mesma quantidade de arroz consome 1,5 mil litros. A carne de boi, por sua vez,
consome de 13,5 mil litros a 20,7 mil litros de água por quilo produzido.
Esse desperdício, juntamente com o crescimento populacional, impõe
a necessidade de que se amplie a produção de alimentos, impactando no acesso e
no consumo de água, especialmente quando a produção se dá em regiões que exigem
intervenções e investimentos, seja em técnicas de produção, em infraestruturas,
na abertura de novas fronteiras agrícolas, nas transposições de rios, na
interligação de bacias, nas construções de açudes, de barragens, entre outras
alterações que afetam o equilíbrio ambiental.
Atuação do Estado.
A agricultura é um exemplo evidente de que para se chegar ao uso
racional da água e que priorize as necessidades humanas acima das necessidades
econômicas, é preciso ir além do discurso de conscientização da população,
exigindo também a ação regulamentadora do Estado e, sobretudo, um despertar
crítico sobre os antagonismos do modo capitalista de produção. Isto porque este
sistema influencia as relações sociais, o que dificulta que a conscientização
surja autonomamente.
Desta forma, o que se pode esperar com maior possibilidade é um
movimento da sociedade pressionando o Estado, interface que muitas vezes
defende e concilia os interesses do capital, a tomar medidas que reduzam os
antagonismos, contudo, sem mudar radicalmente a ordem vigente. Esta tomada de
consciência decorre mais do impacto dos custos, necessidades e restrições já
instalados, ou seja, das conseqüências, do que no sentido de conhecer, julgar e
agir nas causas dos problemas. Assemelha-se com uma adaptação social às
imposições do sistema de capital, entre elas, a escassez e transformação dos
recursos naturais, incluindo a água, em mercadorias, seletivamente disponíveis
a quem podem pagar por elas.
Umas
das opções que o Estado tem a seu dispor para ordenar a utilização dos recursos
naturais está em seu poder de legislar. É através da
ação política que o poder público define, por exemplo, leis de zoneamento que
determinam quais áreas são apropriadas para a ocupação residencial, quais são
propícias para a atividade agrícola e quais devem ser preservadas. Leis que
definem também as formas de utilização da água, de manutenção das fontes
hídricas, etc.
Todavia, a legislação e a ação política são resultados de uma
relação social, de poder, de interesse e de inclinação ideológica. Leis que
emanam das mesmas relações de poder que orientam a política e que, portanto,
não deixam de carregar a mesma carga ideológica e os mesmos interesses dos
grupos que as elaboraram, apesar do Estado dispor de todo o aparato para a
elaboração de estudos e projeções capazes de estimar o impacto e as
conseqüências das diversas ações e alterações decorrentes das atividades
sociais e econômicas e de ter o poder concedido para autorizá-las ou
impedi-las, agindo de acordo com a supremacia dos interesses sociais.
Portanto, as leis não têm o poder absoluto de conscientizar, pois
é o processo de conscientização social que deve antevir para nortear o processo
político de desenvolvimento e aprovação das leis. Neste sentido fica evidente
que tanto o sistema econômico quanto o sistema político são aspectos de um
mesmo elemento, que de forma complexa e dialética, se inter-relacionam compondo
o modo de produção capitalista.
A conscientização sobre o uso da água requer a conscientização
sobre o antagonismo do sistema capitalista de produção.
A conscientização a respeito da crise hídrica perpassa pela
conscientização quanto ao antagonismo do atual sistema socioeconômico, porém,
não há como esperar conscientização da sociedade se os estímulos são opostos a
isso. Se a prática contradiz o discurso.
Inclusive o discurso ecologicamente correto se torna estratégia do
capital para agregar valor as suas mercadorias ou fortalecer a imagem de suas
organizações quando estas desenvolvem medidas sustentáveis. Verifica-se que o
discurso da sustentabilidade ambiental deixa de ser incompatível com o modo de
produção capitalista, mas parte de sua estratégia de sobrevivência e de
superação de sua própria crise, no entanto, reforçando as desigualdades e
fazendo delas oportunidade de lucro.
Não se percebe uma conscientização social sobre a escassez da
água, pois a resposta não é autônoma, mas fruto das imposições do próprio
modelo social e econômico de produção e da apreensão da sociedade que está
arcando com a materialidade do ônus econômico da crise, o qual é socializado,
seja na forma de preços, seja na forma de restrições. Também não é uma resposta
decorrente do exemplo conscientizador do Estado, pois contraditoriamente, o
próprio Estado investe em ações que visam ampliar a circulação econômica
sustentada pela produção e pelo consumo crescente, confundindo em seus
discursos crescimento econômico com desenvolvimento social, apesar do
agravamento das desigualdades e da concentração dos lucros.
Superar a crise da água, consequentemente, a crise da produção de
alimentos, da pobreza, entre outras mazelas sociais e problemas ambientais,
implica superar o atual modelo de produção. Entretanto, como o sistema
capitalista é contraditório em si mesmo, e julgando que ele é fruto de um
processo histórico, o próprio movimento do sistema na dilatação de seus limites
para contornar as crises inerentes, poderá gerar as condições materiais
necessárias para a superação do atual modelo de produção baseado na acumulação
para um modelo baseado nas necessidades. Porém, o modelo econômico não é
isolado do sistema político, e este não tem existência independente do sistema
social, permanecendo o dever da sociedade pautar conscientemente suas ações
para uma finalidade comum.
Embora a solução pareça ser um círculo vicioso, é nas contradições
do sistema que está a saída. Se o sistema age, respaldado pela ideologia, de
modo a influenciar a ação e a consciência social, os resultados materiais de
suas próprias estratégias de sobrevivência, gerando crises, problemas
socioambientais, desigualdades, podem estimular a ação e a consciência social,
pressionando a ação política e a ação estatal, as quais gradual e
dialeticamente poderão influenciar a sociedade rumo à hegemonia, ou seja, rumo
à autonomia em relação aos valores e à lógica preponderantemente econômica e
exploradora do vigente modo de produção.
Somente uma sociedade hegemônica, que pauta conscientemente suas
ações para uma finalidade comum, é que pode agir e exigir de forma coerente a
ação do Estado e de si mesma, de forma a equilibrar a relação entre o econômico
e o social.
Dessa forma, o comportamento individual não é responsável
exclusivo pela crise, como destacam muitos discursos apologistas do modelo
vigente, mas um dos elementos inter-relacionados ao sistema.
Resta aguardar o desenrolar do processo histórico que poderá
propiciar as bases para a hegemonia social, mas como ainda não existem as
plenas condições materiais para uma mudança efetiva no sistema de produção, é
necessário, dentro exigir do Estado medidas que reduzam as injustiças no acesso
na distribuição dos custos sociais e econômicos da exploração dos recursos
naturais, sem transferir a responsabilidade e o ônus exclusivamente para a
sociedade.
Urge medidas que amenizem as desigualdades decorrentes do modelo
econômico sustentado pela exploração, consumo e desperdício sem limites de um
lado, enquanto gera miséria e escassez de outro, pois a crise hídrica não é um
problema pontual, mas parte de um problema complexo que exige a formação
dialética de uma consciência sobre os antagonismos de todo o modo de produção
capitalista, questão que passa também pela educação, reforçando a
responsabilidade do Estado.
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