segunda-feira, 17 de agosto de 2015

RESULTADO DO II CONCURSO LITERÁRIO FOED CASTRO CHAMMA 2015 - PEÇAS TEATRAIS: ADULTOS


PEÇAS TEATRAIS: ADULTOS
01. Maygon André Molinari - Irati/PR
Título: Leito de morte
Leito de morte


Personagens:

Beatrice
 (da Divina Comédia)
Sonia
 (de Crime e Castigo)
Diadorim
 (de Grande sertão: veredas)




Cena única:

As três mulheres andam por uma estrada, cada uma leva um balde vazio

SONIA: Para você, Beatrice, esta caminhada até o poço que procuramos não é nada, comparada às tuas andanças com Dante do outro lado da vida.
BEATRICE: Na verdade nós andamos pouco... Ele andou mais com Virgílio.
SONIA: De qualquer forma, não se compara a este caminho sinuoso aqui na Terra.
BEATRICE: Sim, nisso devo concordar. É melhor andar do lado de lá.
DIADORIM: Você também deve ter andado uns bons trechos, Sonia, afinal, seguiu Raskolnikov até a Sibéria...
SONIA: Não fizemos todo o trajeto a pé. Na verdade, aquele caminho em direção ao cárcere era mais suave do que este, em direção ao poço. Mas você, Diadorim, foi a mais forte de nós três. Combateu ao lado de Riobaldo no grande sertão brasileiro... E por todo o tempo pensaram que você fosse um homem! Além da força nas pernas te foi exigida a força do disfarce.
DIADORIM: O ser humano é propenso à máscara, de modo que isso não me custou tanto assim.
BEATRICE: Que horas saímos de casa?
DIADORIM: Creio que foi de manhã. Seis ou sete, não mais.
SONIA: Está cansada, Beatrice?
BEATRICE: Não por isso... Temo que não cheguemos ao poço até a noite.
DIADORIM: É verdade, já deveríamos ter chegado.
BEATRICE: E se não chegarmos teremos que dormir ao relento.
SONIA: Sim... E por estas bandas talvez existam estupradores.
BEATRICE: Estupradores existem onde existe ser humano.
SONIA: Ser humano masculino.
BEATRICE: Sim, mas não somente. Há mulheres que violentam mais que o corpo: agridem a alma.
SONIA: Pensando desse jeito, então talvez todas sejamos criminosas.
BEATRICE: Pensando desse jeito, estou certa de que ninguém se salva. Mas Diadorim segue conosco. Guerreira, combatente, por certo nos protegeria.
DIADORIM: Não sou assim tão forte... Tive a sorte de andar sempre com Riobaldo. Ele sim era valente.

Andam um pouco em silêncio.

SONIA: Por que será que nos encontramos?
BEATRICE: Não imagino qual seja a resposta... Mas também já pensei nisso.
DIADORIM: Até onde sei, somos apenas personagens.
SONIA: Sim, mas por que viemos parar aqui e não ficamos em nossas obras de origem?
BEATRICE: Creio que algum engraçadinho resolveu nos mover... Talvez ele tenha algum propósito.
SONIA: Como nos enlouquecer, por exemplo?
BEATRICE: Acho que ele (ou ela) pretende dizer alguma coisa pelas nossas bocas.
SONIA: Ora, e por que não diz por sua própria boca?
BEATRICE: Talvez por que não se julgue digno para dizer.
DIADORIM: Então talvez seja algo de mais grave...
BEATRICE: Sim, alguma coisa a respeito do destino humano.
SONIA: E por que será que aqui não chegaram mais personagens? Gostaria que Raskolnikov aqui estivesse.
BEATRICE: Talvez porque exista algo que só possa ser dito por mulheres – e entre mulheres.
SONIA: Pode ser.
DIADORIM: Então seremos porta-vozes de alguém?
BEATRICE: Talvez, Diadorim...
DIADORIM: Mas de quem? de Dante? De Dostoiévski? De Guimarães Rosa?
BEATRICE: Não sei... talvez sejamos porta-vozes de Deus.
DIADORIM: Você o conheceu, do outro lado?
BEATRICE: Não... acho até que estive perto, mas não conheci. Vi alguns santos, alguns mártires.
DIADORIM: E no que eles diferem de um homem comum?
BEATRICE: Na capacidade maior que eles têm para o sofrimento.
SONIA: Me senti em casa agora... As páginas de Crime e Castigo aprofundam o sofrimento como poucas no mundo inteiro.
BEATRICE: Com isso devemos concordar, Sonia.
DIADORIM: Mas não entendo porque teríamos algo a dizer por alguém. E será que seríamos mesmo porta-vozes de Deus?
BEATRICE: De Deus ou do diabo.
SONIA: Ou pior: de um homem qualquer.
BEATRICE: Sim... talvez de um homem qualquer.

Param, olham para o céu.

SONIA: E nada de chuva, né?
DIADORIM: Nada de chuva.
BEATRICE: E o sol declina rápido... seguiremos andando pela noite, provavelmente.
SONIA: Vocês suspeitam da distância que agora que nos separa do poço?
DIADORIM: Não faço qualquer ideia.
BEATRICE: Eu tampouco...
SONIA: Qual será nossa reação diante da água, quando a encontrarmos?
BEATRICE: Creio que será uma reação meio que religiosa.
DIADORIM: Será de orgulho.
SONIA: Não nos trará apenas uma dor mais profunda?
BEATRICE: Por quê?
SONIA: Quando enchermos nossos baldes sofreremos de um jeito diferente: estaremos ainda mais distantes da condição humana de penúria e escassez – e não é possível afastar-se da dor sem sofrer.
DIADORIM: Mas e se não chegarmos ao poço?
BEATRICE: Será que existe essa possibilidade?
DIADORIM: Não sei... Às vezes penso que isso é o mais provável.
SONIA: De minha parte sugiro que prossigamos, independente dos resultados.
BEATRICE: Fala de irmos até algum outro poço?
SONIA: Falo apenas de andarmos.
DIADORIM: Por mim tudo bem... Seguimos adiante.

Sentam, descansam. Levantam-se com dificuldade. Levantam-se mais velhas.

SONIA: Há muitos anos caminhamos em busca de um poço d’água.
DIADORIM: Sim, há muitos anos.
BEATRICE: Estive a pensar em uma coisa. Já reparam nesta nossa estrada?
SONIA: Sim, ela é sempre margeada por barrancos.
DIADORIM: Às vezes altos, às vezes mais baixos...
BEATRICE: Não ocorreu a vocês que talvez estejamos andando no leito de um rio sem água?
SONIA: Nossa! Não tinha pensado nisso...
DIADORIM: Verdade, parece um rio seco, realmente.
SONIA: Então, por todo este tempo, à procura de água, desdenhamos que estivemos a caminhar sobre um rio vazio...
DIADORIM: Sim, um rio baldo.
SONIA: Baldo?
DIADORIM: Sim, falho...
BEATRICE: A verdade, porém, me parece maior, mais ampla.
SONIA: O que você enxerga, além de nós?
BEATRICE: Talvez não seja apenas o leito vazio de um rio...
DIADORIM: Mas, então, o que seria? Fale-nos logo...
BEATRICE: Talvez estejamos num leito de morte.
SONIA: Da nossa morte?
BEATRICE: Creio que não... pois fomos criadas na imortalidade... Mas talvez seja um leito de morte dos homens.
DIADORIM: E por que coube a nós três percorrê-lo?
BEATRICE: Não sei... Talvez tenhamos também nos tornado mártires. Fizemos este percurso para que não seja preciso que outros o façam.
SONIA: Então não acharemos o poço?
BEATRICE: Não me parece que achá-lo nos pertença.
SONIA: Então pertencerá a outros?
DIADORIM: Diga-nos, Beatrice, pertencerá a outros?
BEATRICE: Talvez pertença a quem souber andar pelas margens.

Fim




02. Maygon André Molinari - Irati/PR
Título: O último copo
O último copo
Personagem:
Um homem – o último homem
Cenário: uma pequena sala (ou quarto), com pouca iluminação. Uma bacia, sobre uma mesa. Uma panela, num pequeno armário. Um copo d’água (mudado continuamente de lugar pelo personagem – pelo último homem).

Cena I
O ÚLTIMO HOMEM:
Não sei como cheguei a isto (Fala caminhando pela sala). Será um mérito ter ficado por último? Serei um vencedor? Já posso estourar os foguetes?
(Senta-se na cadeira, se debruça sobre a mesa. Acaricia o copo d’água.)
Somos nós, meu amigo, meu irmão! Os últimos! Eu sou o último homem e você o último copo d’água! Aceita estourar os foguetes comigo? Vamos para fora? (Levanta-se com o copo na mão, balança-o com cuidado para não derramar a água).
(Deixa o copo na mesa. Levanta-se. Coça a barba espessa. Arruma a gola de um paletó batido.)
O último homem! Eu! Que mérito... Quanta honra, oh bom destino! Eu poderia escrever um livro, não é isso? As editoras estão aí, todas vazias. Posso escolher a maior e publicar a minha obra. E também posso escolher minuciosamente o melhor teatro do país para o lançamento... Eia! Sentar-me numa poltrona luxuosa e falar para um auditório vazio sobre meu livro... Sobre o livro do último homem, sobre a glória que é ter ficado até o fim!
(Gargalha, curva-se de tanto rir. Para de súbito. Ergue a cadeira.)
Eu devia, na verdade, era quebrar tudo à minha volta. Meter fogo no mundo, começando por mim – quem disse isso? Hein, quem? Drummond? Drummond... meu querido...
Escreva um poema aí do além sobre este momento da humanidade – ou melhor, sobre este momento apenas meu... afinal, sou o que sobrou da espécie. Ahaha deixaram por último o pior exemplar... Escreva, meu bom poeta... Te sugiro que comece assim: “Os homens não veem mais o homem. Os olhos se afastaram, ele está só...” Ah, que versos horríveis! Não sou poeta... Drummond, rogai por nós. Por mim, na verdade, por mim.
(Pega o copo.)
Ai (tosse), de tanto falar me deu sede, mas só posso molhar a língua, só uma gotinha. (coloca a língua no copo e a retira abruptamente) Isso, só um nadinha de água. Haha! Que privilégio! Tenho água. Todos morreram de sede, me parece. Mas não sei. Não há ninguém nos jornais e TVs para me confirmar essa notícia. Acho que foi por isso. Sobrei por um acaso. Talvez não passe de hoje. Ou de amanhã, quem saberá!

Cena II

(Anda pelo cômodo, quer um pano)

O ÚLTIMO HOMEM:

Preciso tomar um banho. Estou suado, um verdadeiro porco. Por sorte não tem nenhuma mulher aqui comigo, senão eu teria que, disfarçadamente, cheirar minhas axilas pra ver se fedem (Cheira as axilas, sorri). O cheiro está normal. Desodorante novo, aguenta 48 horas, foi a última propaganda que passou na TV. Haha. Nunca consegui disfarçar direito. Sempre que tinha que constatar o cheiro no sovaco alguém percebia... Há! De que importa agora?
(Pega um paninho, molha a ponta na água do copo.)
Um banho! Meu banho! (Passa o pano no rosto, no pescoço, nos braços) Chega! Já está bom. Se minha mãe visse isso me chamaria de descuidado. Se minha namorada visse me chamaria de nojento. Ah, um banho! Está bom assim, pra mim. Não sairei hoje de casa. Não terei visitas também. Ah! Nem tudo são espinhos nesta solidão assustadora.
(Caminha, pensa)
Devo passar mais desodorante? Quem me garante que o cheiro aguentará até amanhã, quando acabarem as 48 horas? O pior, o pior mesmo, é que se não aguentar eu tenho que ficar quieto... O PROCON fechou... Nosso defensor, nosso guardião! Ah, é complicado não ter a quem reclamar sobre meus direitos de consumidor. Aliás, acho que na vida nunca passei de um mero consumidor. A única coisa que fui... Um competente consumidor. Como a maioria. Sempre atento às novidades, aos novos modelos de TV e celular... E acho que cumpri bem meu papel, sempre fiel às revoluções eletrônicas. Sou um bom consumidor (bate no peito). Antes da pátria, o consumo! O lema dos homens que agora não existem mais! Consumir, aquecer a economia. Legal, isso é legal. Cumpri meu papel também. Minha nobre missão. Não sei por que não morri com os outros. Sou o último. Isto merece um foguete. (Abre o armário, pega um foguete, faz menção de acender)
Ah, dane-se o foguete, a comemoração!  Ainda ia assustar esses cachorros que andam na rua, roendo os ossos dos mortos... Ah, não, que eles se divirtam! Ah! Será que sou mau? Sou um homem perverso?
Não, eu não sou mau. Sou um homem comum, estúpido... A diferença é que fui o vencedor. Fiquei. Os outros também eram estúpidos. Foi por acaso que sobrei.
(Senta-se de súbito)
Ahh, estou cansado.
Não sei há quantos dias que estou assim. Minha água foi acabando devagar... até tenho alguma comida, mas não me sinto com ânimo para cozinhar! Ah, me lembrei agora das receitas da mãe: ela sempre dizia assim: um copo com água no arroz... Sim, e olha aqui, mãe, um copo com água! (Ergue o copo) O último do mundo. Acho que a senhora se orgulharia de mim.
Mas não vou usar este copo para o arroz. Ele é um talismã! Talvez ele seja até mesmo um troféu. Vou deixá-lo aqui no alto. (Põe o copo sobre o armário. Debruça-se sobre a mesa. Dorme.)

Cena III

(Ele acorda na mesa, assustado)
O ÚLTIMO HOMEM:
Eia! Dormi! Sonhei com muitas pessoas... Elas estavam aqui ainda. Que ironia. De dia o mundo é vazio, à noite é povoado pelos homens que o destruíram – e é povoado justamente por conta de um sonho! Foi o sonho o que nos fez? Somos meros seres oníricos?
Ah... mas eu também destruí o mundo. Na verdade, não é justo que eu tenha sobrevivido. Podia ter sido qualquer um. Minha mãe, um guitarrista de blues, um operário, um lavrador... Ah, fui eu! Tanto fazia, na verdade, quem fosse. Ficar ou partir pertence ao mesmo destino.
Só não entendo por que todos morreram tão subitamente... Foi assim, como um raio: parece que espalhou-se a notícia de que não existia mais água no mundo e... Pá! Começou a morrer gente de sede. Fazia duas semanas que não chovia em nenhuma parte e, de fato, as águas baixavam nos reservatórios. Mas foi muito de repente. E apesar de o maior motivo ser a sede, houve muito suicídio, homicídio, enfarto. Uma notícia pela internet e ninguém mais ficou em pé. Acho que foi isso que aconteceu, ninguém me confirma, ninguém me ajuda... Quem sabe eu tenha sobrado justamente por não ter acessado naquele dia o meu perfil em rede social... Sim, deve ter sido isso! Fui o único a não saber na hora da notícia, e quando ela me chegou depois já chegou mais velha e eu não dei muita bola. Não me assustou. Eu tinha ainda alguma água na casa, e com ela vivi por esses dias, uns cinco ou seis. Até chegar a este copo d’água! Ei! (Olha para o alto do armário, pega o copo) Ufa... por sorte não caiu nenhum mosquito aqui dentro. Imagina perder a guerra para um mosquitinho qualquer!
Bem, de certa forma, olhando bem as coisas... ainda há muitos insetos no mundo. Acho que os vencedores são eles. É só sair e andar um pouco pelas ruas para ver que para eles tudo está como era antes. Na verdade, até os outros animais estão se virando, não sei como... Não se vê cachorros mortos, nem gatos, nem nada. Não sei como eles conseguem... Será que todo bicho é como o camelo? Bem, se for assim, só os homens ficaram de fora.
Ah, menos eu! O herói, o campeão! E eis o copo! (Balança o copo e derrama um pouco d’água no chão)
Ah, que maldito que eu sou! Perdi água! (Abaixa-se, lambe o tapete). Que descuido nada heróico! Nada vencedor!
Melhor deixar o copo na mesa... não sei porque só eu sobrevivi. Sempre fui atrapalhado.
Os bichos... os insetos... eles ficaram e ficarão. Será que viverei até amanhã? Ninguém me velará, tampouco serei enterrado. Espero ao menos que um cachorro bonito roa os meus ossos. Não quero esses vira-latas pulguentos que latem durante a noite toda.
Bem, mas o que me importa?
Acho que é até melhor que um rabugento fique com meu corpo, afinal, não teve nada na vida, o coitado. Que se danem os poodles! Ahaha. Os cachorrinhos de madame já estão sofrendo com a ausência de suas rainhas! Ahaha, que dominem o mundo os vira-latas!
Eita! Me lembrei de uma frase de Sartre. Acho que é de Sartre, mas não vou procurar o livro. É mais ou menos assim: quem sabe o mundo fosse melhor sem os homens.
Ah, francês esquisito! Acertou essa na mosca hein! Já que eu falava em insetos... Sim, o mundo vai ficar melhor sem nós. E quem sabe aí, dentro de uns milhões de anos, os chimpanzés assumam nosso posto e façam tudo diferente. Quem sabe não explodam as coisas, não façam secar os riachos, não morram de sede como nós, os inteligentes!
Os chimpanzés! Haha. E quantas vezes nós caçoamos deles! Eia, os novos donos do mundo! Faço este anúncio com uma antecipação de 3 milhões de anos. Espero apenas que façam justiça e mencionem meu nome. Vou escrever isso com uma faca aqui nesta mesa... Ih! Mas será que eles vão falar português? É melhor eu escrever em inglês, que é língua universal, até entre os bichos.
Hehe eu sou um gênio! Batam palmas, chimpanzés, quando lerem isto. Só, por favor, não cometam nossos piores erros, está certo? Nada de BBB em suas TVs, tudo bem?
E de preferência nada de novela. Ah, e também evitem programas de domingo com auditório... É uma sugestão... Isso é horrível!
E como será que vocês verão a literatura? Por favor, preservem os nossos grandes, vou deixar uma lista pra vocês. (Escreve e fala) Dostoiévski, Guimarães Rosa, Tomas Mann, Jane Austen, Cecília Meireles, Coetzee... Eita, vou escrever uma lista gigante. Melhor assim, vocês podem ver que também tivemos coisas boas. Que não fomos apenas consumidores.
Ah, mas me sinto tão cansado. O corpo ressequido... Não quero virar num gole só este copo, embora pudesse fazer isso em dois segundos...
E há quanto tempo não chove? Está para três semanas... Não me sinto forte para aguentar...

(Desfalece, cai no chão)

A ÚLTIMA CENA DO ÚLTIMO HOMEM

O ÚLTIMO HOMEM:

(Rasteja pelo cômodo. A voz mais fraca.)

Parece que aguentei mais do que devia. Pelas minhas contas não chove há um mês. Minha morte já é necessária. Não é mais justo viver. Não me matarei apenas por manter uma teimosa esperança de que aconteça um milagre... Sim, pode chover... Quem sabe até mais alguém apareça nesse mundo abandonado, não sei, ninguém saberá...
(Fecha os olhos, suspira fundo).
De modo estranho me sinto envergonhado por este momento. Mas a vergonha não existe apenas por conta de um olhar alheio? Eu só podia me sentir envergonhado se mais gente estivesse aqui... Ou ao menos um espelho.
(Procura um espelho. Acha.)
Estou horrível, ressecado. O rosto parece um sabugo de milho seco. Ah, o que sobrou da humanidade... Este tosco exemplar... Me sinto, de alguma forma, responsável por este último ato humano. De alguma forma, mesmo sem alguém por perto, penso que eu deveria tornar este último instante especial. (Cansa, respira fundo) Eu sou o responsável pelo último instante da espécie, deve torná-lo honroso, superior. Não terá pensado algo semelhante o primeiro homem, há milhões de anos? Não sei qual posição é pior... Creio que ele, lá nos primórdios, deve ter tido esperança. Deve ter imaginado que era o primeiro exemplar de uma espécie nobre, que povoaria a Terra com elegância, beleza e justiça.
Coitado. Equivocou-se.
Ah, meu caro, sinta o meu abraço viajando no tempo! Somos irmãos, o primeiro e o último homem! Sabe, devo te dizer... creio que, na verdade, se o mundo tivesse começado com uma mulher, as coisas estariam diferentes... Agora não estaria eu aqui, sôfrego, me exaurindo... E teu nome foi mesmo Adão? Não deve ter sido... Teu nome deve ter sido Sonho, ou mesmo Devaneio. Quer saber qual é o meu? É Desgosto – ou Solidão. Palavra feminina para o último homem... Talvez a palavra, feita mulher – ou a mulher, tornada verbo, possa me salvar...
Primeiro homem! Te digo adeus!
(Acena para alguém ausente. Rasteja pelo cômodo. Apóia-se na mesa, se levanta.)
Devo parar agora com toda esta cena... Minha responsabilidade por ser o último acaba agora. Não terei mais obrigações. Que meu fim, contudo, seja grandioso, e que ao menos estas paredes vazias saibam reconhecer meu ato final – minha glória!
(Pega o copo d’água, vira-o no rosto. A água escorre pelo corpo. Em seguida o último homem cai morto no chão.)
Nesse instante começa a chover.

Fim




03. Maygon André Molinari- Irati/PR
Título: Dentro de si
Personagens:

Feto 1
Feto 2
Mãe
Pai



Cena 1
Dois fetos dentro de uma mulher.

FETO 1: (Reflexivo) Parece que existimos, não é mesmo?
FETO 2: (Distante) Se você chama de existência o nosso estado nesta água estranha, num lugar apertado e escuro, então sim, existimos.
F1: Não seja tão dramático (apesar disto aqui se tratar de um drama). Existimos sim, vivemos na água como peixes.
F2: Como peixes?
F1: Sim, afinal, há pouco tempo, quando despontamos como embriões, poderíamos facilmente ser confundidos com embriões de peixes. Não se lembra que éramos parecidos com peixes?
F2: Lembro-me de tão pouco... (Reflete) Mas, ah sim, neste caso, também poderíamos ter sido confundidos com embriões de tartarugas, de galinhas, de coelhos... Os embriões de alguns animais são parecidos no início. (Ar de intelectual)
F1: Sim, pois a vida começou na água, mais precisamente nos mares do passado, quando seres ainda sem nome despontaram nas profundezas dos oceanos, já de imediato tendo que lutar pela sobrevivência.
F2: Você é um feto darwinista?
F1: Não sei ainda, não pudemos ler os livros aqui dentro desta barriga. O que sabemos é o que ela diz.
F2: Sim... ela, a mãe, a grande mãe.
F1: (Triste) Por falar nisso, hoje ela está calada.
F2: Não é verdade. Falou muito de manhã, mas você estava dormindo.
F1: Pode ser. Aliás, o que fazer aqui dentro senão tirar umas boas sonecas?

Cena 2

Entram um homem e uma mulher

MÃE: Por que você diz que é arriscado ter filhos hoje em dia?
PAI: Você parece que não pensa. Veja: não haverá água potável dentro de vinte anos. Estamos gerando seres fadados a morrer de sede. É perigoso ter filhos hoje.
MÃE: Perigo sempre houve. Não creio que nossa situação seja mais favorável que a de um Homo habilis.
PAI: Você tá brincando comigo, né? Homo habilis! Não estamos lá no passado pré-histórico! Estamos aqui, século XXI, o século do fim dos seres humanos.
MÃE: (Incisiva) Que trágico, você! A humanidade passou por crises muito mais graves que esta – e as superou.
PAI: (Frio) As crises de antes talvez tenham sido menores.
MÃE: (Empolga-se) Equivoca-se o senhor: os homens é que eram mais fortes. Os homens? Creio que sempre quem segurou a barra da sobrevivência foi a mulher. Imagine! Os homens sempre devem ter sido, na grande maioria, duvidosos como você. (Fala com a voz esganiçada, imitando o homem:) Ai, será que adianta ter filhos? Será que não é perigoso? (Volta à voz normal:) Pois se não quer, me deixe sozinha que eu os crio! E eu vou lá deixar de tê-los por conta dos perigos do mundo? Sempre estivemos a perigo. Mas a verdade é que somente os que amam o risco é que podem, depois, ser chamados de mulheres e de homens. Os outros não passam de meros viventes.
PAI: Você é dura em suas sentenças! Não disse para não termos essas crianças que estão na sua barriga, apenas que hoje está mais difícil...
MÃE: Nunca será fácil para quem já entra com o espírito do medo, do fracasso, da debandada...
Afastam-se um do outro.
Cena 3
Os fetos dialogam:

F2: (Inquieto) Será que vamos sobreviver lá fora?
F1: Por que a pergunta?
F2: Tenho medo de que não consigamos sobreviver fora da água.
F1: Algumas vezes já pensei nisso também... Você ouviu o pai dizer que daqui a vinte anos não haverá água potável?
F2: Sim, acho que temo muito por isso... Não seria melhor não nascermos?
F1: Não é preciso tanto, né? O que você quer? Que sejamos fetos suicidas? (Ri)
F2: Não sei... apenas tenho medo.
F1: Olha, eu te digo uma coisa... Ainda que seja pra viver só um dia lá fora, eu me sinto disposto a nascer. Haja água ou não.
F2: Espero que possamos viver mais que um dia.
F1: Espero que saibamos, antes de tudo, o que é viver. (Olha pra longe, divaga)
F2: Acho que você espera muito de nós...

F1: Não sei se trata-se disso... Gostaria apenas de não nascer à toa, e depois gostaria também de não viver em vão.
F2: Acha que existem pessoas que vivem em vão?
F1: Tenho a impressão de que elas são a maioria.
F2: Como pode dizer isso?
F1: Se nosso pai disse que a água está escasseando, creio que a maioria das vidas foi levada em vão, considerando a incapacidade de guardar aquilo que nos gerou.
F2: É verdade... Parece também uma espécie de ingratidão.
F1: Sim, dia desses eu pensei que a espécie humana só sobrevive se for mal agradecida.
F2: Em que sentido?
F1: Sobrevive se der às costas à terra, às árvores, aos rios... Isso tem um nome... Você sabe... Progresso...
F2: Mas o que seria da humanidade sem o progresso?
F1: O que seria, exatamente, eu não sei... O que me parece certo é que seria mais forte.
F2: Mais forte?
F1: Menos dependente, por certo. Menos subordinada.
F2: Não compreendo...
F1: Quanto mais progresso, mais subordinação... Mais necessidade de coisas para servir de apoio na travessia do berço até a cova. Pense: mais necessidade de apoio em aparelhos que causem distração, que nos impeçam de pensar nas nossas grandes misérias. E de onde vêm os materiais para tais aparelhos? Da terra, das rochas que sustentam as encostas, das profundezas que sustentam os rios subterrâneos... E mais... Digo outra coisa: só parece viável, hoje, uma agricultura que priorize a destruição. Não há mais amor à terra... afinal, os homens nem querem mais tocá-la... quem a toca são as máquinas... Ingratidão pura! A sobrevivência que escolhemos, no entanto, não vai muito longe...
F2: Pensa que por conta disso não existe muita chance para nós?
F1: Vai depender de quem nós formos lá fora.
F2: (Aflito) Me diga: existe alguma chance?
F1: Se lá fora formos como somos aqui dentro, ou seja, pessoas afetadas pelo drama humano, creio que sim.
F2: Mas já somos pessoas? Há muitos teóricos, sobretudo no direito, que nos consideram apenas como uma coisa em potencial.
F1: Potencial o cacete! Somos pessoas sim. Minha única dúvida é se lá fora seremos homens ou meros viventes, como disse nossa mãe.
Cena 4
A mãe e o pai.

PAI: (Desesperado) Não poderíamos ter essas crianças, mulher! Veja o que disseram no jornal: o mundo acabará em três anos, afirmam pesquisadores do Japão.
MÃE: (Debochada) Mais um motivo para que nasçam!
PAI: Motivo? Você é louca?
MÃE: Quem não garante que estes dois que aqui estão (Fala acariciando a barriga) não serão os salvadores do mundo?
PAI: (Gargalha) Ah! Loucura... Que sonho insano é esse? Que ilusão te dominou? Você não deveria ser minha mulher, deveria ser mulher de Dom Quixote de La Mancha!
MÃE: Tanto melhor se fosse mesmo! Ao menos ele passou por cima de tudo aquilo que nele era ridículo em busca da coragem e da honra.
PAI: Ache alguém como ele então!
MÃE: Por mim eu acharia mesmo, mas, olhando para o mundo em que vivemos, não vejo sequer homens, imagine um honrado guerreiro!
PAI: Diante dessa ofensa não posso mais ficar ao teu lado. Faça o que quiser com essas crianças. (Sai)
MÃE: (Fala firme) Farei delas homens.
Última cena
Fetos
F2: Ouviu o que a mãe disse?
F1: Sim, ela quer nos tornar homens.

F2: Sim, quero nascer, agora! Se estivéssemos lá fora você veria minhas lágrimas, mas aqui, nesta água, não as notará.
F1: Pelo contrário, acabei de bebê-las – e com gosto.
F2: Quer dizer que aceita o encargo que nos dará nossa mãe?
F1: De fato. Não sei, entretanto, se salvaremos o mundo... Talvez o pai esteja certo, quanto a isso, embora nada justifique a sua fuga.
F2: Será que ele volta?
F1: Acho que sim, não é a primeira vez que ele foge.
F2: Verdade. E a mãe fica sempre firme... Será que ela não é mesmo louca?
F1: Não sei. Pode ser que seja, Sancho Pança.
F2: Melhor para nós, Dom Quixote!
F1: Sim! Melhor para nós... Melhor para todos!

Fim












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