PEÇAS
TEATRAIS: ADULTOS
01. Maygon André Molinari - Irati/PR
Título:
Leito de morte
Leito
de morte
Personagens:
Beatrice
(da Divina Comédia)
Sonia
(de Crime e Castigo)
Diadorim
(de Grande sertão: veredas)
Cena
única:
As três mulheres
andam por uma estrada, cada uma leva um balde vazio
SONIA:
Para
você, Beatrice, esta caminhada até o poço que procuramos não é nada, comparada
às tuas andanças com Dante do outro lado da vida.
BEATRICE:
Na verdade nós andamos pouco... Ele andou mais com Virgílio.
SONIA:
De qualquer forma, não se compara a este caminho sinuoso aqui na Terra.
BEATRICE:
Sim, nisso devo concordar. É melhor andar do lado de lá.
DIADORIM:
Você também deve ter andado uns bons trechos, Sonia, afinal, seguiu Raskolnikov
até a Sibéria...
SONIA:
Não
fizemos todo o trajeto a pé. Na verdade, aquele caminho em direção ao cárcere
era mais suave do que este, em direção ao poço. Mas você, Diadorim, foi a mais
forte de nós três. Combateu ao lado de Riobaldo no grande sertão brasileiro...
E por todo o tempo pensaram que você fosse um homem! Além da força nas pernas
te foi exigida a força do disfarce.
DIADORIM:
O ser humano é propenso à máscara, de modo que isso não me custou tanto assim.
BEATRICE:
Que horas saímos de casa?
DIADORIM:
Creio que foi de manhã. Seis ou sete, não mais.
SONIA:
Está cansada, Beatrice?
BEATRICE:
Não por isso... Temo que não cheguemos ao poço até a noite.
DIADORIM:
É verdade, já deveríamos ter chegado.
BEATRICE:
E se não chegarmos teremos que dormir ao relento.
SONIA:
Sim... E por estas bandas talvez existam estupradores.
BEATRICE:
Estupradores existem onde existe ser humano.
SONIA:
Ser humano masculino.
BEATRICE:
Sim, mas não somente. Há mulheres que violentam mais que o corpo: agridem a
alma.
SONIA:
Pensando
desse jeito, então talvez todas sejamos criminosas.
BEATRICE:
Pensando desse jeito, estou certa de que ninguém se salva. Mas Diadorim segue
conosco. Guerreira, combatente, por certo nos protegeria.
DIADORIM:
Não sou assim tão forte... Tive a sorte de andar sempre com Riobaldo. Ele sim
era valente.
Andam
um pouco em silêncio.
SONIA:
Por que será que nos encontramos?
BEATRICE:
Não imagino qual seja a resposta... Mas também já pensei nisso.
DIADORIM:
Até onde sei, somos apenas personagens.
SONIA:
Sim, mas por que viemos parar aqui e não ficamos em nossas obras de origem?
BEATRICE:
Creio que algum engraçadinho resolveu nos mover... Talvez ele tenha algum
propósito.
SONIA:
Como nos enlouquecer, por exemplo?
BEATRICE:
Acho que ele (ou ela) pretende dizer alguma coisa pelas nossas bocas.
SONIA:
Ora, e por que não diz por sua própria boca?
BEATRICE:
Talvez por que não se julgue digno para dizer.
DIADORIM:
Então talvez seja algo de mais grave...
BEATRICE:
Sim, alguma coisa a respeito do destino humano.
SONIA:
E por que será que aqui não chegaram mais personagens? Gostaria que Raskolnikov
aqui estivesse.
BEATRICE:
Talvez
porque exista algo que só possa ser dito por mulheres – e entre mulheres.
SONIA:
Pode
ser.
DIADORIM:
Então
seremos porta-vozes de alguém?
BEATRICE:
Talvez,
Diadorim...
DIADORIM:
Mas
de quem? de Dante? De Dostoiévski? De Guimarães Rosa?
BEATRICE:
Não
sei... talvez sejamos porta-vozes de Deus.
DIADORIM:
Você o conheceu, do outro lado?
BEATRICE:
Não... acho até que estive perto, mas não conheci. Vi alguns santos, alguns
mártires.
DIADORIM:
E no que eles diferem de um homem comum?
BEATRICE:
Na capacidade maior que eles têm para o sofrimento.
SONIA:
Me senti em casa agora... As páginas de Crime e Castigo aprofundam o sofrimento
como poucas no mundo inteiro.
BEATRICE:
Com isso devemos concordar, Sonia.
DIADORIM:
Mas não entendo porque teríamos algo a dizer por alguém. E será que seríamos
mesmo porta-vozes de Deus?
BEATRICE:
De Deus ou do diabo.
SONIA:
Ou pior: de um homem qualquer.
BEATRICE:
Sim... talvez de um homem qualquer.
Param,
olham para o céu.
SONIA:
E nada de chuva, né?
DIADORIM:
Nada de chuva.
BEATRICE:
E o sol declina rápido... seguiremos andando pela noite, provavelmente.
SONIA:
Vocês suspeitam da distância que agora que nos separa do poço?
DIADORIM:
Não faço qualquer ideia.
BEATRICE:
Eu tampouco...
SONIA:
Qual será nossa reação diante da água, quando a encontrarmos?
BEATRICE:
Creio que será uma reação meio que religiosa.
DIADORIM:
Será de orgulho.
SONIA:
Não nos trará apenas uma dor mais profunda?
BEATRICE:
Por quê?
SONIA:
Quando enchermos nossos baldes sofreremos de um jeito diferente: estaremos
ainda mais distantes da condição humana de penúria e escassez – e não é possível
afastar-se da dor sem sofrer.
DIADORIM:
Mas e se não chegarmos ao poço?
BEATRICE:
Será que existe essa possibilidade?
DIADORIM:
Não sei... Às vezes penso que isso é o mais provável.
SONIA:
De minha parte sugiro que prossigamos, independente dos resultados.
BEATRICE:
Fala de irmos até algum outro poço?
SONIA:
Falo apenas de andarmos.
DIADORIM:
Por mim tudo bem... Seguimos adiante.
Sentam,
descansam. Levantam-se com dificuldade. Levantam-se mais velhas.
SONIA:
Há muitos anos caminhamos em busca de um poço d’água.
DIADORIM:
Sim, há muitos anos.
BEATRICE:
Estive a pensar em uma coisa. Já reparam nesta nossa estrada?
SONIA:
Sim, ela é sempre margeada por barrancos.
DIADORIM:
Às vezes altos, às vezes mais baixos...
BEATRICE:
Não ocorreu a vocês que talvez estejamos andando no leito de um rio sem água?
SONIA:
Nossa! Não tinha pensado nisso...
DIADORIM:
Verdade, parece um rio seco, realmente.
SONIA:
Então, por todo este tempo, à procura de água, desdenhamos que estivemos a
caminhar sobre um rio vazio...
DIADORIM:
Sim, um rio baldo.
SONIA:
Baldo?
DIADORIM:
Sim, falho...
BEATRICE:
A verdade, porém, me parece maior, mais ampla.
SONIA:
O que você enxerga, além de nós?
BEATRICE:
Talvez não seja apenas o leito vazio de um rio...
DIADORIM:
Mas, então, o que seria? Fale-nos logo...
BEATRICE:
Talvez estejamos num leito de morte.
SONIA:
Da nossa morte?
BEATRICE:
Creio que não... pois fomos criadas na imortalidade... Mas talvez seja um leito
de morte dos homens.
DIADORIM:
E por que coube a nós três percorrê-lo?
BEATRICE:
Não sei... Talvez tenhamos também nos tornado mártires. Fizemos este percurso
para que não seja preciso que outros o façam.
SONIA:
Então não acharemos o poço?
BEATRICE:
Não me parece que achá-lo nos pertença.
SONIA:
Então pertencerá a outros?
DIADORIM:
Diga-nos, Beatrice, pertencerá a outros?
BEATRICE:
Talvez pertença a quem souber andar pelas margens.
Fim
02.
Maygon André Molinari - Irati/PR
Título:
O último copo
O último
copo
Personagem:
Um homem
– o último homem
Cenário:
uma pequena sala (ou quarto), com pouca iluminação. Uma bacia, sobre uma mesa.
Uma panela, num pequeno armário. Um copo d’água (mudado continuamente de lugar
pelo personagem – pelo último homem).
Cena I
O ÚLTIMO HOMEM:
Não sei como cheguei
a isto (Fala caminhando pela sala). Será um mérito ter ficado por
último? Serei um vencedor? Já posso estourar os foguetes?
(Senta-se na cadeira, se debruça sobre a mesa.
Acaricia o copo d’água.)
Somos nós, meu
amigo, meu irmão! Os últimos! Eu sou o último homem e você o último copo d’água!
Aceita estourar os foguetes comigo? Vamos para fora? (Levanta-se com o copo
na mão, balança-o com cuidado para não derramar a água).
(Deixa o copo na mesa. Levanta-se. Coça a barba
espessa. Arruma a gola de um paletó batido.)
O último homem! Eu!
Que mérito... Quanta honra, oh bom destino! Eu poderia escrever um livro, não é
isso? As editoras estão aí, todas vazias. Posso escolher a maior e publicar a
minha obra. E também posso escolher minuciosamente o melhor teatro do país para
o lançamento... Eia! Sentar-me numa poltrona luxuosa e falar para um auditório
vazio sobre meu livro... Sobre o livro do último homem, sobre a glória que é
ter ficado até o fim!
(Gargalha, curva-se de tanto rir. Para de
súbito. Ergue a cadeira.)
Eu devia, na
verdade, era quebrar tudo à minha volta. Meter fogo no mundo, começando por mim
– quem disse isso? Hein, quem? Drummond? Drummond... meu querido...
Escreva um poema aí
do além sobre este momento da humanidade – ou melhor, sobre este momento apenas
meu... afinal, sou o que sobrou da espécie. Ahaha deixaram por último o pior
exemplar... Escreva, meu bom poeta... Te sugiro que comece assim: “Os homens
não veem mais o homem. Os olhos se afastaram, ele está só...” Ah, que versos
horríveis! Não sou poeta... Drummond, rogai por nós. Por mim, na verdade, por
mim.
(Pega o copo.)
Ai (tosse),
de tanto falar me deu sede, mas só posso molhar a língua, só uma gotinha. (coloca
a língua no copo e a retira abruptamente) Isso, só um nadinha de água.
Haha! Que privilégio! Tenho água. Todos morreram de sede, me parece. Mas não
sei. Não há ninguém nos jornais e TVs para me confirmar essa notícia. Acho que
foi por isso. Sobrei por um acaso. Talvez não passe de hoje. Ou de amanhã, quem
saberá!
Cena II
(Anda
pelo cômodo, quer um pano)
O ÚLTIMO HOMEM:
Preciso tomar um banho. Estou suado, um
verdadeiro porco. Por sorte não tem nenhuma mulher aqui comigo, senão eu teria
que, disfarçadamente, cheirar minhas axilas pra ver se fedem (Cheira as axilas, sorri). O cheiro está
normal. Desodorante novo, aguenta 48 horas, foi a última propaganda que passou
na TV. Haha. Nunca consegui disfarçar direito. Sempre que tinha que constatar o
cheiro no sovaco alguém percebia... Há! De que importa agora?
(Pega um
paninho, molha a ponta na água do copo.)
Um banho! Meu banho! (Passa o pano no rosto, no pescoço, nos braços) Chega! Já está bom.
Se minha mãe visse isso me chamaria de descuidado. Se minha namorada visse me
chamaria de nojento. Ah, um banho! Está bom assim, pra mim. Não sairei hoje de
casa. Não terei visitas também. Ah! Nem tudo são espinhos nesta solidão
assustadora.
(Caminha,
pensa)
Devo passar mais desodorante? Quem me garante
que o cheiro aguentará até amanhã, quando acabarem as 48 horas? O pior, o pior
mesmo, é que se não aguentar eu tenho que ficar quieto... O PROCON fechou...
Nosso defensor, nosso guardião! Ah, é complicado não ter a quem reclamar sobre
meus direitos de consumidor. Aliás, acho que na vida nunca passei de um mero
consumidor. A única coisa que fui... Um competente consumidor. Como a maioria.
Sempre atento às novidades, aos novos modelos de TV e celular... E acho que
cumpri bem meu papel, sempre fiel às revoluções eletrônicas. Sou um bom
consumidor (bate no peito). Antes da
pátria, o consumo! O lema dos homens que agora não existem mais! Consumir,
aquecer a economia. Legal, isso é legal. Cumpri meu papel também. Minha nobre
missão. Não sei por que não morri com os outros. Sou o último. Isto merece um
foguete. (Abre o armário, pega um
foguete, faz menção de acender)
Ah, dane-se o foguete, a comemoração! Ainda ia assustar esses cachorros que andam
na rua, roendo os ossos dos mortos... Ah, não, que eles se divirtam! Ah! Será
que sou mau? Sou um homem perverso?
Não, eu não sou mau. Sou um homem comum,
estúpido... A diferença é que fui o vencedor. Fiquei. Os outros também eram
estúpidos. Foi por acaso que sobrei.
(Senta-se
de súbito)
Ahh, estou cansado.
Não sei há quantos dias que estou assim. Minha
água foi acabando devagar... até tenho alguma comida, mas não me sinto com
ânimo para cozinhar! Ah, me lembrei agora das receitas da mãe: ela sempre dizia
assim: um copo com água no arroz... Sim, e olha aqui, mãe, um copo com água! (Ergue o copo) O último do mundo. Acho
que a senhora se orgulharia de mim.
Mas não vou usar este copo para o arroz. Ele é um
talismã! Talvez ele seja até mesmo um troféu. Vou deixá-lo aqui no alto. (Põe o copo sobre o armário. Debruça-se
sobre a mesa. Dorme.)
Cena III
(Ele acorda na mesa, assustado)
O ÚLTIMO HOMEM:
Eia! Dormi! Sonhei com muitas pessoas... Elas
estavam aqui ainda. Que ironia. De dia o mundo é vazio, à noite é povoado pelos
homens que o destruíram – e é povoado justamente por conta de um sonho! Foi o
sonho o que nos fez? Somos meros seres oníricos?
Ah... mas eu também destruí o mundo. Na
verdade, não é justo que eu tenha sobrevivido. Podia ter sido qualquer um.
Minha mãe, um guitarrista de blues, um operário, um lavrador... Ah, fui eu!
Tanto fazia, na verdade, quem fosse. Ficar ou partir pertence ao mesmo destino.
Só não entendo por que todos morreram tão subitamente...
Foi assim, como um raio: parece que espalhou-se a notícia de que não existia
mais água no mundo e... Pá! Começou a morrer gente de sede. Fazia duas semanas
que não chovia em nenhuma parte e, de fato, as águas baixavam nos
reservatórios. Mas foi muito de repente. E apesar de o maior motivo ser a sede,
houve muito suicídio, homicídio, enfarto. Uma notícia pela internet e ninguém
mais ficou em pé. Acho que foi isso que aconteceu, ninguém me confirma, ninguém
me ajuda... Quem sabe eu tenha sobrado justamente por não ter acessado naquele
dia o meu perfil em rede social... Sim, deve ter sido isso! Fui o único a não
saber na hora da notícia, e quando ela me chegou depois já chegou mais velha e
eu não dei muita bola. Não me assustou. Eu tinha ainda alguma água na casa, e
com ela vivi por esses dias, uns cinco ou seis. Até chegar a este copo d’água!
Ei! (Olha para o alto do armário, pega o
copo) Ufa... por sorte não caiu nenhum mosquito aqui dentro. Imagina perder
a guerra para um mosquitinho qualquer!
Bem, de certa forma, olhando bem as coisas...
ainda há muitos insetos no mundo. Acho que os vencedores são eles. É só sair e
andar um pouco pelas ruas para ver que para eles tudo está como era antes. Na
verdade, até os outros animais estão se virando, não sei como... Não se vê
cachorros mortos, nem gatos, nem nada. Não sei como eles conseguem... Será que
todo bicho é como o camelo? Bem, se for assim, só os homens ficaram de fora.
Ah, menos eu! O herói, o campeão! E eis o copo!
(Balança o copo e derrama um pouco d’água
no chão)
Ah, que maldito que eu sou! Perdi água! (Abaixa-se, lambe o tapete). Que
descuido nada heróico! Nada vencedor!
Melhor deixar o copo na mesa... não sei porque
só eu sobrevivi. Sempre fui atrapalhado.
Os bichos... os insetos... eles ficaram e
ficarão. Será que viverei até amanhã? Ninguém me velará, tampouco serei
enterrado. Espero ao menos que um cachorro bonito roa os meus ossos. Não quero
esses vira-latas pulguentos que latem durante a noite toda.
Bem, mas o que me importa?
Acho que é até melhor que um rabugento fique
com meu corpo, afinal, não teve nada na vida, o coitado. Que se danem os
poodles! Ahaha. Os cachorrinhos de madame já estão sofrendo com a ausência de
suas rainhas! Ahaha, que dominem o mundo os vira-latas!
Eita! Me lembrei de uma frase de Sartre. Acho
que é de Sartre, mas não vou procurar o livro. É mais ou menos assim: quem sabe
o mundo fosse melhor sem os homens.
Ah, francês esquisito! Acertou essa na mosca
hein! Já que eu falava em insetos... Sim, o mundo vai ficar melhor sem nós. E
quem sabe aí, dentro de uns milhões de anos, os chimpanzés assumam nosso posto
e façam tudo diferente. Quem sabe não explodam as coisas, não façam secar os
riachos, não morram de sede como nós, os inteligentes!
Os chimpanzés! Haha. E quantas vezes nós
caçoamos deles! Eia, os novos donos do mundo! Faço este anúncio com uma
antecipação de 3 milhões de anos. Espero apenas que façam justiça e mencionem
meu nome. Vou escrever isso com uma faca aqui nesta mesa... Ih! Mas será que
eles vão falar português? É melhor eu escrever em inglês, que é língua
universal, até entre os bichos.
Hehe eu sou um gênio! Batam palmas, chimpanzés,
quando lerem isto. Só, por favor, não cometam nossos piores erros, está certo?
Nada de BBB em suas TVs, tudo bem?
E de preferência nada de novela. Ah, e também
evitem programas de domingo com auditório... É uma sugestão... Isso é horrível!
E como será que vocês verão a literatura? Por
favor, preservem os nossos grandes, vou deixar uma lista pra vocês. (Escreve e fala) Dostoiévski, Guimarães
Rosa, Tomas Mann, Jane Austen, Cecília Meireles, Coetzee... Eita, vou escrever
uma lista gigante. Melhor assim, vocês podem ver que também tivemos coisas
boas. Que não fomos apenas consumidores.
Ah, mas me sinto tão cansado. O corpo
ressequido... Não quero virar num gole só este copo, embora pudesse fazer isso
em dois segundos...
E há quanto tempo não chove? Está para três
semanas... Não me sinto forte para aguentar...
(Desfalece,
cai no chão)
A ÚLTIMA
CENA DO ÚLTIMO HOMEM
O ÚLTIMO HOMEM:
(Rasteja pelo cômodo. A voz mais fraca.)
Parece que aguentei
mais do que devia. Pelas minhas contas não chove há um mês. Minha morte já é
necessária. Não é mais justo viver. Não me matarei apenas por manter uma
teimosa esperança de que aconteça um milagre... Sim, pode chover... Quem sabe
até mais alguém apareça nesse mundo abandonado, não sei, ninguém saberá...
(Fecha os olhos, suspira fundo).
De modo estranho me
sinto envergonhado por este momento. Mas a vergonha não existe apenas por conta
de um olhar alheio? Eu só podia me sentir envergonhado se mais gente estivesse
aqui... Ou ao menos um espelho.
(Procura um espelho. Acha.)
Estou horrível,
ressecado. O rosto parece um sabugo de milho seco. Ah, o que sobrou da
humanidade... Este tosco exemplar... Me sinto, de alguma forma, responsável por
este último ato humano. De alguma forma, mesmo sem alguém por perto, penso que
eu deveria tornar este último instante especial. (Cansa, respira fundo)
Eu sou o responsável pelo último instante da espécie, deve torná-lo honroso,
superior. Não terá pensado algo semelhante o primeiro homem, há milhões de
anos? Não sei qual posição é pior... Creio que ele, lá nos primórdios, deve ter
tido esperança. Deve ter imaginado que era o primeiro exemplar de uma espécie
nobre, que povoaria a Terra com elegância, beleza e justiça.
Coitado.
Equivocou-se.
Ah, meu caro, sinta
o meu abraço viajando no tempo! Somos irmãos, o primeiro e o último homem!
Sabe, devo te dizer... creio que, na verdade, se o mundo tivesse começado com
uma mulher, as coisas estariam diferentes... Agora não estaria eu aqui,
sôfrego, me exaurindo... E teu nome foi mesmo Adão? Não deve ter sido... Teu
nome deve ter sido Sonho, ou mesmo Devaneio. Quer saber qual é o meu? É
Desgosto – ou Solidão. Palavra feminina para o último homem... Talvez a
palavra, feita mulher – ou a mulher, tornada verbo, possa me salvar...
Primeiro homem! Te
digo adeus!
(Acena para alguém ausente. Rasteja pelo
cômodo. Apóia-se na mesa, se levanta.)
Devo parar agora com
toda esta cena... Minha responsabilidade por ser o último acaba agora. Não
terei mais obrigações. Que meu fim, contudo, seja grandioso, e que ao menos
estas paredes vazias saibam reconhecer meu ato final – minha glória!
(Pega o copo d’água, vira-o no rosto. A água
escorre pelo corpo. Em seguida o último homem cai morto no chão.)
Nesse instante
começa a chover.
Fim
03.
Maygon André Molinari- Irati/PR
Título:
Dentro de si
Personagens:
Feto 1
Feto 2
Mãe
Pai
Cena 1
Dois fetos dentro de uma mulher.
FETO 1: (Reflexivo) Parece que existimos,
não é mesmo?
FETO 2: (Distante) Se você chama de
existência o nosso estado nesta água estranha, num lugar apertado e escuro,
então sim, existimos.
F1: Não seja tão dramático (apesar disto aqui
se tratar de um drama). Existimos sim, vivemos na água como peixes.
F2: Como peixes?
F1: Sim, afinal, há pouco tempo, quando
despontamos como embriões, poderíamos facilmente ser confundidos com embriões
de peixes. Não se lembra que éramos parecidos com peixes?
F2: Lembro-me de tão pouco... (Reflete) Mas, ah sim, neste caso,
também poderíamos ter sido confundidos com embriões de tartarugas, de galinhas,
de coelhos... Os embriões de alguns animais são parecidos no início. (Ar de intelectual)
F1: Sim, pois a vida começou na água, mais
precisamente nos mares do passado, quando seres ainda sem nome despontaram nas
profundezas dos oceanos, já de imediato tendo que lutar pela sobrevivência.
F2: Você é um feto darwinista?
F1: Não sei ainda, não pudemos ler os livros
aqui dentro desta barriga. O que sabemos é o que ela diz.
F2: Sim... ela, a mãe, a grande mãe.
F1: (Triste)
Por falar nisso, hoje ela está calada.
F2: Não é verdade. Falou muito de manhã, mas
você estava dormindo.
F1: Pode ser. Aliás, o que fazer aqui dentro
senão tirar umas boas sonecas?
Cena 2
Entram
um homem e uma mulher
MÃE: Por que você diz que é arriscado ter
filhos hoje em dia?
PAI: Você parece que não pensa. Veja: não
haverá água potável dentro de vinte anos. Estamos gerando seres fadados a
morrer de sede. É perigoso ter filhos hoje.
MÃE: Perigo sempre houve. Não creio que nossa
situação seja mais favorável que a de um Homo
habilis.
PAI: Você tá brincando comigo, né? Homo habilis! Não estamos lá no passado
pré-histórico! Estamos aqui, século XXI, o século do fim dos seres humanos.
MÃE: (Incisiva)
Que trágico, você! A humanidade passou por crises muito mais graves que esta –
e as superou.
PAI: (Frio)
As crises de antes talvez tenham sido menores.
MÃE: (Empolga-se)
Equivoca-se o senhor: os homens é que eram mais fortes. Os homens? Creio que
sempre quem segurou a barra da sobrevivência foi a mulher. Imagine! Os homens
sempre devem ter sido, na grande maioria, duvidosos como você. (Fala com a voz esganiçada, imitando o
homem:) Ai, será que adianta ter filhos? Será que não é perigoso? (Volta à voz normal:) Pois se não quer,
me deixe sozinha que eu os crio! E eu vou lá deixar de tê-los por conta dos
perigos do mundo? Sempre estivemos a perigo. Mas a verdade é que somente os que
amam o risco é que podem, depois, ser chamados de mulheres e de homens. Os outros
não passam de meros viventes.
PAI: Você é dura em suas sentenças! Não disse
para não termos essas crianças que estão na sua barriga, apenas que hoje está
mais difícil...
MÃE: Nunca será fácil para quem já entra com o
espírito do medo, do fracasso, da debandada...
Afastam-se um do outro.
Cena 3
Os fetos dialogam:
F2: (Inquieto)
Será que vamos sobreviver lá fora?
F1: Por que a pergunta?
F2: Tenho medo de que não consigamos sobreviver
fora da água.
F1: Algumas vezes já pensei nisso também...
Você ouviu o pai dizer que daqui a vinte anos não haverá água potável?
F2: Sim, acho que temo muito por isso... Não
seria melhor não nascermos?
F1: Não é preciso tanto, né? O que você quer?
Que sejamos fetos suicidas? (Ri)
F2: Não sei... apenas tenho medo.
F1: Olha, eu te digo uma coisa... Ainda que
seja pra viver só um dia lá fora, eu me sinto disposto a nascer. Haja água ou
não.
F2: Espero que possamos viver mais que um dia.
F1: Espero que saibamos, antes de tudo, o que é
viver. (Olha pra longe, divaga)
F2: Acho que você espera muito de nós...
F1: Não sei se trata-se disso... Gostaria
apenas de não nascer à toa, e depois gostaria também de não viver em vão.
F2: Acha que existem pessoas que vivem em vão?
F1: Tenho a impressão de que elas são a
maioria.
F2: Como pode dizer isso?
F1: Se nosso pai disse que a água está
escasseando, creio que a maioria das vidas foi levada em vão, considerando a
incapacidade de guardar aquilo que nos gerou.
F2: É verdade... Parece também uma espécie de
ingratidão.
F1: Sim, dia desses eu pensei que a espécie
humana só sobrevive se for mal agradecida.
F2: Em que sentido?
F1: Sobrevive se der às costas à terra, às
árvores, aos rios... Isso tem um nome... Você sabe... Progresso...
F2: Mas o que seria da humanidade sem o
progresso?
F1: O que seria, exatamente, eu não sei... O
que me parece certo é que seria mais forte.
F2: Mais forte?
F1: Menos dependente, por certo. Menos
subordinada.
F2: Não compreendo...
F1: Quanto mais progresso, mais subordinação...
Mais necessidade de coisas para servir de apoio na travessia do berço até a
cova. Pense: mais necessidade de apoio em aparelhos que causem distração, que
nos impeçam de pensar nas nossas grandes misérias. E de onde vêm os materiais
para tais aparelhos? Da terra, das rochas que sustentam as encostas, das
profundezas que sustentam os rios subterrâneos... E mais... Digo outra coisa:
só parece viável, hoje, uma agricultura que priorize a destruição. Não há mais
amor à terra... afinal, os homens nem querem mais tocá-la... quem a toca são as
máquinas... Ingratidão pura! A sobrevivência que escolhemos, no entanto, não
vai muito longe...
F2: Pensa que por conta disso não existe muita
chance para nós?
F1: Vai depender de quem nós formos lá fora.
F2: (Aflito)
Me diga: existe alguma chance?
F1: Se lá fora formos como somos aqui dentro,
ou seja, pessoas afetadas pelo drama humano, creio que sim.
F2: Mas já somos pessoas? Há muitos teóricos,
sobretudo no direito, que nos consideram apenas como uma coisa em potencial.
F1: Potencial o cacete! Somos pessoas sim. Minha
única dúvida é se lá fora seremos homens ou meros viventes, como disse nossa
mãe.
Cena 4
A mãe e o pai.
PAI: (Desesperado) Não poderíamos ter
essas crianças, mulher! Veja o que disseram no jornal: o mundo acabará em três
anos, afirmam pesquisadores do Japão.
MÃE: (Debochada) Mais um motivo para que
nasçam!
PAI: Motivo? Você é louca?
MÃE: Quem não garante que estes dois que aqui
estão (Fala acariciando a barriga)
não serão os salvadores do mundo?
PAI: (Gargalha)
Ah! Loucura... Que sonho insano é esse? Que ilusão te dominou? Você não deveria
ser minha mulher, deveria ser mulher de Dom Quixote de La Mancha!
MÃE: Tanto melhor se fosse mesmo! Ao menos ele
passou por cima de tudo aquilo que nele era ridículo em busca da coragem e da
honra.
PAI: Ache alguém como ele então!
MÃE: Por mim eu acharia mesmo, mas, olhando
para o mundo em que vivemos, não vejo sequer homens, imagine um honrado
guerreiro!
PAI: Diante dessa ofensa não posso mais ficar
ao teu lado. Faça o que quiser com essas crianças. (Sai)
MÃE: (Fala
firme) Farei delas homens.
Última
cena
Fetos
F2: Ouviu o que a mãe disse?
F1: Sim, ela quer nos tornar homens.
F2: Sim, quero nascer, agora! Se estivéssemos
lá fora você veria minhas lágrimas, mas aqui, nesta água, não as notará.
F1: Pelo contrário, acabei de bebê-las – e com
gosto.
F2: Quer dizer que aceita o encargo que nos
dará nossa mãe?
F1: De fato. Não sei, entretanto, se salvaremos
o mundo... Talvez o pai esteja certo, quanto a isso, embora nada justifique a
sua fuga.
F2: Será que ele volta?
F1: Acho que sim, não é a primeira vez que ele
foge.
F2: Verdade. E a mãe fica sempre firme... Será
que ela não é mesmo louca?
F1: Não sei. Pode ser que seja, Sancho Pança.
F2: Melhor para nós, Dom Quixote!
F1: Sim! Melhor para nós... Melhor para todos!
Fim
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